Eu não sei como foi a pandemia pra vocês, mas eu levei muito a sério a coisa do isolamento. Saia o mínimo possível, sempre de máscara, cheguei a ficar 9 meses sem visitar minha mãe, sozinha no meu apartamento, ainda morando em Minas Gerais. Como tinha acabado de me mudar, no início não tinha nada em casa, então fui preenchendo meu tempo com arrumação de casa, assistir muita Netflix, ler, ver milhões de lives, dar aula no sistema emergencial remoto (que a deusa me livre disso de novo). Não fui a festas, visitei pessoas só depois de seguirmos um protocolo meticuloso para evitar contágio. Deu certo, eu não peguei Covid nessa época. Foi só quando as aulas começaram no presencial que aconteceu, mas já estava bem vacinada.
Mas eu tive uma extravagância. Quando chegou fevereiro de 2021 eu já estava quase surtando no esquema limpa sacola, coloca máscara para arejar, não sair de casa. Resolvi viajar sozinha para algum lugar próximo, explorar finalmente MG. Decidi por Tiradentes, que oferecia uma possibilidade de rolê histórico (ai, que culta ela!), paisagens bonitas para eu usar minha câmera fotográfica nova (sonho de criança) e uma serra para subir.
Cheguei na cidade em uma quarta-feira à tarde, e explorei a pequena cidade nos dias da semana, indo em igrejas, museus, galerias de arte, lojas, andei pela rua sem rumo só para tirar foto de coisa velha e bonita (eu acho coisas velhas muito bonitas), fui naquela cruz onde a Hilda Furacão tirou os peito pra fora e fez o padre colocar a mão (ai, a adolescente assistindo Rodrigo Santoro de padre! haha). Até sexta-feira a cidade estava pacata, na maioria dos restaurantes (meu momento de pânico, porque tinha que tirar a máscara pra comer), era só eu no salão. Uma tranquilidade, paz, sem pressa.
Em uma das tardes choveu, eu voltei pra pousada e dormi, coisa que nunca eu tinha me permitido numa viagem, sempre sou a doida que não quer perder um segundo. Mas estava chovendo, eu estava cansada da máscara na cara, e a cidade nem é tão grande assim.
Durante esses dias, o que mais me impressionou na cidade foi a Serra de São José que compunha a paisagem. Ficava pensando por onde é que eu ia subir aquele morro no sábado, se era até lá em cima mesmo que eu ia, que rumo ia tomar.
Sábado chegou, segui a pé até a sede da agência de trekking, me encontrei com o guia e mais 3 pessoas (um casal e uma outra garota – todos mineiros). Mais pessoas iriam participar da trilha, mas desistiram por conta do clima. O guia nos entregou capas de chuva (porque já havia sinais de que a chuva viria) e uns bastões de madeira para nos ajudar a subir e descer a Serra. Também nos explicou como seria o percurso, e antes de sairmos, já começou a chuva. Não estava forte, mas constante. Saímos munidos de bastão e vestidos com as capas.
Era uma visão bonita, aquele grupo de 5 pessoas andando pelas ruas históricas de Tiradentes, com seus bastões/cajados, na chuva. Era bem cedo, mas cruzamos com algumas pessoas nas ruas, com jeito de serem moradores mesmo. Um senhor olhou bem para o grupo, disse bom dia e um “que Deus acompanhe vocês” com um tom meio “o que essa gente maluca está indo andar nessa chuva?!”. Foi engraçado, me senti meio doida mesmo.
Andamos uns 800 metros em trecho urbano, até chegar no início da trilha. Nesse momento a chuva parou, pudemos tirar as capas. Nessa época eu não tinha muita experiência em trilha, e foi um re(começo) das andanças. Foi depois dessa trilha que eu comecei a comprar apetrechos, voltar com alguma regularidade. Não tinha o calçado adequado, roupa adequada, tinha disposição.
Começamos a subida e embora a trilha não fosse difícil, estava tudo bem encharcado e tinha bastante bifurcações. O guia tinha bastante paciência, nos chamou atenção para muitos detalhes da flora, comemos uma fruta que ele colheu parecida com fruta-do-conde, que infelizmente não lembro o nome. Mas era boa também. Foi por aí que eu desisti da máscara. Sim, até esse momento estávamos usando máscara na trilha, mas com a chuva, o calor que começou, o suor, a máscara ficando encharcada e eu não conseguindo respirar, apenas rezei para não pegar Covid e deixei boca e nariz livres (gente, que alívio). Não era impossível fazer a trilha de máscara, mas eu comecei a duvidar se ela encharcada como estava me dava alguma proteção mesmo.
O guia falou um pouco da sua história, e que a escolha em trabalhar como guia mudou a vida dele para muito melhor. Chegamos ao início do que chamam de Calçada dos Tropeiros ou dos Escravos, uma parte da trilha que possui calçamento com pedras, construída por escravos no itinerário da corrida do ouro nos séculos XVII e XVIII.
Muitas trilhas que eu faço foram construídas com o propósito de deslocamento de pessoas e animais, e não para trekking. É sempre doido pensar como andar era algo do cotidiano das pessoas, e em algumas comunidades ainda é, mas nos centros urbanos, você sair pra andar de mochila nas costas, é motivo para as pessoas te olharem, desejarem que Deus te proteja e você ficar se sentindo uma doida. Sabe, andar... coisa básica da vida. Deslocamento. Em que momento você depender apenas de suas pernas para ir de um lugar ao outro se tornou coisa de doido, enquanto que dirigir uma geringonça que expele ar fedido na cara da gente virou coisa de gente cool?! Eu acredito muito que uma pessoa tem que ser capaz de viver sua vida inteira sem um carro, e não se sentir privada de nada. Pra mim, só em cidades que garantem isso a gente tem realmente liberdade. Aí vocês calculem o quanto acho que somos livres né?!
Bom, voltando para a trilha, após o trecho da calçada, logo chegamos ao mirante, a parte mais alta da trilha em que é possível avistar Tiradentes lá embaixo, pequena, mas bem bonita com suas construções no meio do verde.
Eu estava tão morta nessa hora, nas fotos de trilha eu estou sempre descabeladíssima. Eu simplesmente não sei como tem gente com foto em trilha toda arrumada, blogueira. Eu as vezes sou blogueira para os meus 10 amigos que acompanham as minhas coisas de trilha no Instagram, mas uma de cara vermelha e cabelo seboso.
Logo continuamos e chegamos à uma cruz com um amontoado de Pedras, a Cruz do Carteiro. A história que dá nome à trilha, ao mirante e a cruz conta que este trajeto da trilha era realizado por um certo carteiro na época da Inconfidência Mineira. Ele levava correspondências entre os rebeldes e acabou sofrendo uma emboscada da coroa portuguesa, que assassinou ele no caminho, e onde o crime aconteceu, construíram a cruz, e as pessoas que passam deixam uma pedra a mais para demarcar o local.
Eu acho essas histórias fantásticas, talvez de um jeito exagerado, fantasioso ou até 100% verdadeiro, não sei, mas saber que de alguma forma aquele caminho que você está percorrendo já foi um marco de resistência ou que relembra parte importante da nossa história, dá mais fôlego para continuar (na trilha e na vida). E a gente já está tão acostumado à história contada nos livros e a acreditar naquilo tudo, porque não acreditar também nas histórias dos guias, dos locais. Eu gosto mais dessas versões.
Bom, depois da cruz, andamos pelo topo da Serra, uma vegetação rasteira, muita rocha, florzinhas roxas que nos levaram a umas cachoeiras em escadinha, que formavam poços rasos para nadar.
Nesse momento, como que numa fantasia contada pelo guia, o tempo abriu, o sol saiu, e os 4 que não desistiram da trilha comemoraram. Deu para entrar na água cor de “coca-cola” (precisamos achar um nome melhor para a cor dessas águas gente! Rs), refrescar, descansar as pernas e os pés, curtir uma queda nas costas para relaxar os ombros, conversar. Também foi nosso local de parada para lanche. Ficamos um bom tempo por lá.
Na volta, parece que todo santo ajuda na descida, foi bem mais rápido e tranquilo. Os bastões de madeira ajudaram muito e foi a primeira vez que eu percebi como eles fazem diferença numa caminhada. Nunca tinha usado um. Chegamos em Tiradentes no final da tarde, nos demoramos lá pela Serra de São José. Ainda bem. A cidade que estava pacata e tranquila até sexta-feira, simplesmente lotou no sábado. Enquanto a gente andava nas ruas com tênis cheios de lama, descabelados e cansados, eu só via pessoas com copo de cerveja na mão, música alta, muito carro, muito topzera (que a deusa me livre disso também rs). Inicialmente minha vontade era voltar pra Serra. Bateu aquele pânico, especialmente por conta do período de pandemia, e também porque depois de umas míseras horas na natureza, silêncio e contemplação, eu aprendi ao longo das trilhas que é normal esse choque quando a gente volta para o caos que a gente está acostumada no dia a dia.
Fui correndo para a pousada, saí apenas para comer num lugar próximo a minha hospedagem. Durante a noite pensei que ia morrer. O sedentarismo da pandemia cobrou o preço. Senti dores por todo o corpo, parecia que eu tinha andado uns 50 km, mas tinham sido apenas 8 km (sei lá, eu ainda acho que me contaram uma mentira que foi só isso! rs). Foi a vez que mais fiquei com dores pós-trilha, rolei na cama, e fiquei me perguntando porque eu fiz aquilo. Depois passou e eu queria mais. É sempre assim, até que uma hora a dor vira prazer também, e depois que você passa esse ponto, não tem mais volta, você vai querer para sempre.
Informações Gerais
Local: Serra de São José (Tiradentes – MG)
Quando fui: Fevereiro de 2021
Trilha: Trilha do Carteiro – 7 a 8 km
Sozinha? – Apenas se você tiver experiência e GPS ou aplicativo de trilha com mapa do local, pois há muitas bifurcações.
Que delícia trilhar no texto e sentir a paz nas palavras! 💚🌳
Nah 😝